terça-feira, 9 de fevereiro de 2010





Texto publicado no catálogo da exposição da Copasa:


“convidei o paulo amaral para escrever sobre os desenhos. se não fosse ele, não seria outra pessoa. e ele aceitou. mas pediu que tivesse outro tom, disse que “se for realmente uma orelha, vai ser totalmente de ouvido”.

registramos nossas conversas, silêncios e trocamos alguns e-mails. passamos por nara leão, zé do caixão, o grande vidro e vacina contra rubéola. eu, quase muda, tentando entender melhor meu trabalho com a ajuda, os olhos dele. muita coisa não virou palavra e nem tudo coube nas orelhas, fica guardado entre elas - as palavras, as pessoas e as orelhas...

...”gostei do que você disse sobre falhas técnicas assumidas ou mal disfarçadas, eu te falei uma vez numa aula, alguma dificuldade no desenho das figuras, alguma coisa canhestra, era, por fim, incorporada ao desenho, e nunca aparece de fato como erro estético, o que inviabilizaria o todo.

nós somos assim também, com defeitos de fabricação, remediados como podemos - silicone, botox, próteses, operações de mudança de sexo, etc.

há uma graça nos seus desenhos que é a montagem de um corpo, nem todos, mas em alguns, os elementos disponíveis no momento eram tais e tais, essa mão, ou sei lá o quê. uma crueza no fundo compassiva com nossas (nos sentimos incluídos) imperfeições. e assim vamos, uma mão na frente, outra atrás ou sem o menor pudor.

acho que eu estava meio equivocado quando falei pra você. não se trata apenas de comentários sobre relacionamentos, acho que tem a dimensão mitológica, existe também... os mitos... revisitar a partir desse fato, das relações, mas acho que extrapola, transcende, vai para um espaço mítico.
não é sobre o cotidiano, objetos do cotidiano, ele está presente mas é um ponto de partida de onde se alcança uma dimensão mitológica mais ampla, de profundidade psíquica, não é comédia do cotidiano...

...fui ler alguma coisa sobre os mitos da androginia (mircea eliade), há muita coisa aí, desde adão e eva; no nosso imaginário, adão e eva são dessacralizados por carmen miranda; romeu e julieta passam a ser também oscarito e grande otelo. os mitos subsistem , contudo.

... não sei, eu acho tão complexo a gente ficar tentando entender o assunto deles, eu hoje estou achando mais complexo do que eu tinha pensado. eu entendo assim, mais do ponto de vista, sentimento do artista, o que me causa de impacto... as formas... mas eles têm possibilidade de ser decifrados sob outras, outras... você não acha não?

um psicanalista que olhar para essas coisas vai conseguir associar, por que tem uma grande liberdade de reunir símbolos, formas... é livre como se fosse sonho.. é muito livre, deu vazão a isso. não é uma coisa que você pensa, premedita o que vai acontecer, mas faz.

olha essa figura aqui com rabo, bicho e gente, o reflexo, a sombra, quem é que pode entender?

... eu acho que eles são todos importantes. vejo mesmo como parte de uma obra grande. acho difícil excluir um.

ainda estou intrigado com a busca de uma equivalência entre os desenhos e um gênero da literatura. não descartei o romance... poemas, poema longo?

eu gosto da fala do cummings, numa nonlecture: but (as it happens) poetry is being, not doing. eu sabia que você ia gostar da orides fontela”.

(Diálogo com Paulo Amaral- texto publicado no catálogo da exposição Self Service- Galeria da Copasa- novembro de 2008).

Nenhum comentário:

Postar um comentário