domingo, 10 de abril de 2011

Sobre a exposição “Aquário dos animais” (Thais Rivitti)

De onde vem essas figuras estranhas que habitam as pinturas de Tatiana Cavinato?
Onde essas criaturas vivem? Como se atrevem a surgir na tela, assim, de chofre, com tão poucas referências ao mundo cotidiano, às ruas de grandes metrópoles contemporâneas, às imagens publicitárias, a programação da TV, aos personagens mais ou menos banais que nos habituamos a encontrar por aí?
Essas pinturas nos provocam. Contrariam, de certa forma, um caminho profícuo aberto também por outros jovens pintores: o de recolher imagens comuns, da internet ou de câmeras de vigilância, por exemplo, e transportá-las para o interior do campo pictórico. As pinturas de Tatiana quase nos indignam. Como se ainda fosse possível simplesmente inventar um mundo paralelo, com bichos fantásticos, seres excêntricos e paisagens irreais. Como se nosso imaginário – e o da artista também, por que supor diferente? – não estivesse colonizado pelo empobrecido universo da cultura imagética no qual vivemos, assistindo a uma sucessão de imagens facilmente codificadas, tratadas, já prontas para o consumo. Como se ainda fosse possível para um artista pintar cenas de lugares exóticos, afastados, distantes da civilização como fez Gauguin no Taiti. Como se fosse possível, ainda, para a pintura, alcançar uma dimensão humana subjetiva, psicológica, profunda como pretenderam alguns pintores expressionistas. Como se o decorativismo de Matisse não tivesse sido capturado pela industria, hoje sendo encontrado em diversos produtos à disposição no mercado. E finalmente como se a cor estridente, não naturalista, das telas fosse capaz de nos mobilizar, logo a nós que já nascemos com lógica da arte pop incorporada. Pensem nas infinitas imagens de Marilyn Monroe que Warhol reproduzia em suas serigrafias “pintando-as” ora de rosa, ora de azul, prateado e por aí em diante.
Nesse conjunto de obras, seres mitológicos e animais convivem com formas quase humanas: cavalos coloridos (mais uma remissão, dessa vez a Chagall que, sem dúvida, os quadros de Tatiana suscitam), as pombas estilizadas, feras com dentes afiados. E, nessa profusão de figuras, encontramos novamente temas clássicos da pintura, muitos deles, aliás, caros a própria arte moderna que os revisitou com frequência. Dos faunos dançando (estariam ensaiando a dança de Matisse?) às modelos posando, deitadas em camas ou sentadas em bancos.
Aos poucos, percebemos que a jovem artista mineira mobiliza, em sua primeira individual em São Paulo, um amplo repertório da pintura. Mais especificamente, talvez, da pintura moderna, as obras-primas de seus grandes mestres”, são suas principais fontes. E há algo corajoso nessa tomada de posição, nesse gesto de recuperação, que acaba por nos sugerir que esse material todo ainda per­manece vivo, não foi suplantado pelas constantes reviravoltas da história da arte. A primeira impressão, a de que seria uma espécie de homenagem da artista ao que se produzia no início do século, assumindo ares francamente conservadores, é desconstruída no contato com as obras.
As telas originalmente foram feitas para serem exibidas sem chassis, como panos esticados diretamente sobre a parede. Na exposi­ção, elas foram coladas em outras telas, comuns, pintadas com cores escuras, para serem expostas de modo mais convencional, mas que deixa entrever a intenção inicial de Tatiana. A artista usa tinta acrílica, e não a convencional tinta a óleo, e isso já a distancia da grande tradição da arte. Seu modo de pintar é displicente, quase permissivo.
Grandes trechos de alguns trabalhos ficam sem tinta, como se estivessem inacabadas. A artista coloca em cena “maneiras” variadas, cada uma associada a um dos movimentos de vanguarda: pinceladas à maneira impressionista, cores à la faüve, ambientes cubistas, construídos sem a tradicional perspectiva clássica. As referências aparecem a todo momento, como citação, rebaixados a condição de “segunda geração”. Em alguns casos, palavras são escritas em cima da pintura, como pichações que depredam monumentos.
A reencenação, estratégia bastante conhecida do público que acompanha as artes visuais hoje, adquire aqui importância funda­mental. A pergunta que surge diante dessa constatação é: afinal, por que reencenar os clássicos? Por que nos apresentar ainda esse repertório já conhecido da pintura moderna em novas roupagens (mais despojada, mais à vontade, menos rigorosa). O mercado responde a essa pergunta com uma afirmação simples: remakes de filmes antigos, ou remixes de músicas conhecidas são um produto certeiro.
Enquanto a sucesso do original assegura que o tema tem forte apelo junto para o presente, e vice-versa). Nesse movimento, algo impalpável, nos melhores momentos, sobrevém em forma de frescor e insubordinação bem humorada. Uma vocação – mo­derna por excelência – de retomar uma tradição que parecia já encerrada. Nas pinturas de Tatiana Cavinato talvez possam ser entendidas como um convite a entender o modernismo de outra forma, perceber ali potencialidades ainda ocultas. Ou ainda como o enfrentamento de ao público, as modificações “atuais” fazem a tradução da linguagem “do passado” para os mais jovens, acostumados ao contemporâneo. Uma receita sem muitos riscos. Mas esse certamente não é o caso das pinturas que vemos em exposição. O compromisso da artista não é com o mercado. A tradição moderna é tematizada, é o lugar de onde vem as figuras e paisagens que aparecem nas telas.
“Aquário dos animais”, o título escolhido para a mostra, faz menção a esse espaço apartado, e de certa forma isolado – o aquário. As pinturas talvez nos façam pensar que há algo nas “grande pinturas” das vanguardas que não se esgotou, que ainda vive, mes­mo que confinado, sob o signo de “tradição”, “passado” ou de “arte moderna”. Distantes daquilo que usualmente identificamos como contemporâneo, elas nos exigem esse movimento de vai-e-vem do passado um impasse histórico posto a todos aqueles que trilham o caminho da arte.

Thais Rivitti









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